domingo, 3 de novembro de 2013

Domingo, dia do Senhor

Hoje evoquei uma memória que parecia ter desaparecido da minha memória.
Num pouco de conversa no trabalho, falava-se de eu respeitar tanto o Domingo. Apesar de entrar no trabalho por volta das oito e meia da manhã, de sair por volta das três (maioritariamente, depois) voltar a entrar pelas cinco e meia e sair bem depois das nove e meia, faço questão de em todos os Domingos vestir o fatinho, colocar ou não uma gravata... Em suma, "vestir-me bem"!
Certo é que me é impossível participar na Missa Dominical, mas continua a ser Domingo, dia do Senhor.
No meio da conversa questionavam qual a razão de me dar ao trabalho de me vestir "domingueiramente", se chego ao trabalho e mudo de roupa. Respondi que era um dia diferente, o dia em que celebramos mais festivamente a Ressurreição de Jesus e que assim estava habituado.
Sem que tivesse margem para jústificações perguntaram logo como cresceu esse hábito. Bem, foi altura de recuar alguns anos na minha vida, ao tempo de seminário em Fornos de Algodres.

Quando entrei para o Seminário Menor de São José em Fornos de Algodres, era costume que a Missa Dominical fosse aberta a toda a comunidade, a toda a vila de Fornos.
As memórias que vagueiam na minha mente dizem-me que o dia começava diferentemente dos outros. Cerca de meia-hora depois de nos acordarem era hora de nos reunirmos a capela para o Ofício de Laudes. Pequeno almoço e tempo de preparação para a missa. Banhinho quente (certas vezes frio se éramos dos últimos), vestir a melhor roupa do armário (propositadamente guardada para aquele dia) e ocupar o tempo que sobrava com televisão, estudo ou algo do género.
Se as minhas recordações não me falham, cerca de meia hora antes da missa, tocava a sineta. As pessoas começavam a chegar, iam-se juntando pelo cláustro ou junto da porta da capela. A nós, seminaristas, cabia-nos estar na capela, a dar um último retoque nos cânticos, limar algumas pontas, etc. Era fántástico de assistir à luminosidade daquela capela. O sol trespassava pelos vitrais, enchendo a capela de luz e cores. Para mim era um espetáculo digno de se ver. E somente ao fim de semana podíamos ver aquele espetáculo, já que durante a semana estávamos nas aulas.
Capela praticamente cheia e hora de começar. Se os Domingos exigiam mais solenidade, como por exemplo os Domingos dos Pais, a procissão de entrada era feita pelo fundo da capela. Castiçais, cruz, incenso e tudo o resto. Soavam as vozes na capela e aquela Eucaristia era um momento mágico, momento esperado toda a semana. No fim da Missa, reuníamos-nos junto à porta, cumprimentando as caras conhecidas que alí passavam. O resto do dia era passado com estudo, filmes ou brincadeiras.
Aquele dia era mágico e marcou a minha vida. Hoje, ao fim de dez, onze anos, a memória veio tão forte que tive de partilhar. Hoje falta-me a Missa ao Domingo, a festa que o Domingo é. Mas o hábito de me vestir "domingueiramente" permanece e o Domingo continua a ser o Dia do Senhor. E talvez esta minha memória seja a memória de mais alguns.



Ad majorem Dei gloriam!
Ismael Sousa

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

A serra!

A chuva chegou de mansinho pelo fim da tarde. Nicolas fazia a sua viagem em direcção a casa, pelas estradas cheias de curvas pela serra. O nevoeiro começou a serrar e pouco ou nada se via à sua frente.
Como ainda tinha tempo e nada o esperava, Nicolas decidiu parar o carro e aproveitar um pouco daquela primeira chuva outunal. Saiu do carro e caminhou um pouco pela estrada que se ia desvendando à sua frente. A chuva miudinha não chateava e sentia-se bem por poder aproveitar aquele momento com o ar puro da serra, o cheiro intenso a terra molhada.
Sem que esperasse, os pensamentos sobre dias anteriores invadiram a sua cabeça. Nada de muito importante, mas que davam alguma felicidade a Nicolas. Toda a felicidade se paga e Nicolas receava que algo mal pudesse acontecer nos dias seguintes. Tentava contrariar-se, dizendo que não, que pequenos momentos de alegria não eram pagos. Mas o que lhe ensinara a vida tinha sido absolutamente o contrário: todos os instantes de felicidade são pagos e por vezes caros de mais.
Nicolas queria deixar aqueles pensamentos de lado e recordar somente o que de bom havia acontecido: o voltar a fazer algo que tanto gostava mas que há muito deixara de fazer; o ter uma conversa interessante e com muita confiança; um café no fim de um dia numa esplanada... Pequenos prazeres, pequenos momentos de felicidade. E essas recordações faziam-no sorrir, ali, no meio do nevoeiro intenso, na chuva miudinha que não deixava de cair.
Nicolas olhou o relógio e apressou-se a voltar ao carro. Ainda havia trabalho a fazer e havia-se perdido em pensamentos tempo de mais.
Quando chegou a casa, jantou qualquer coisa rápida e afundou-se no trabalho. Aquele tempo "perdido" na serra, por entre nevoeiro e chuva, havia-lhe feito bem e não tencionava finalizar o seu dia com papelada e mais papelada.
No momento em que terminou o que havia ficado pendente, Nicolas olhou o relógio de solslaio e reparou que os ponteiros marcavam meia-noite. Dirigiu-se à cozinha, encheu a chávena de café, pegou no maço de cigarros e no seu isqueiro austro-húngaro e foi-se sentar na varanda de sua casa, virada para o cume da serra. Como ele se havia apaixonado pela serra, pelos seus bons ares, pelas suas pedras toscas, pelo prado rasteiro e as árvores verdes!
A sua cabeça enchia-se novamente de tantos pensamentos. De momentos bons, momentos maus, de pessoas de quem sentia saudades, de pessoas que lhe haviam virado as costas e de quem ele gostava. Pensava nos que já haviam partido, na saudade e no lugar vazio que haviam deixado. Sentia, em certas alturas, que o seu coração tinha-se quebrado em mil pedaços, num momento da sua vida e que agorateria de colar todos esses pedaços, deixando de lado o que de mal havia nele.
Sorria, simplesmente sorria. Nem tudo havia sido mau. E de que valia que permanecessem os maus momentos e os bons fossem esquecidos? Nada, simplesmente para aprender com eles, recordarmos bons momentos e deixar de lado essas mágoas e recordações que tanta vez o haviam feito chorar.
Nicolas puxou de um cigarro, acendeu-o e deu os primeiros bafos. A noite estava fresca. Nicolas contemplava a serra, senhora magestosa e modesta, tão conhecedora dos desabafos e bons momentos que Nicolas vivera, alí, na sua cabana ou noutro lugar qualquer. A melhor confidente, a melhor conselheira, a melhor amiga.
Nicolas apagou o seu cigarro, meio fumado, meio por fumar, despediu-se da serra e fechou a porta atrás de si, com um único pensamento na cabeça: afinal nem tudo é tão mau!

Ismael Sousa
Ad majorem Dei gloriam!

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Viktor

A noite chegava de mansinho. Sentado no jardim de sua casa, Viktor perdia-se me pensamentos entre um e outro copo de vinho. As estrelas começavam a iluminar os céus, preparando a chegada da Lua que chegaria esplendorosa e brilhante.
O coração de Viktor era totalmente contrário ao ambiente que o rodeava. Perdia-se, o seu coração, em recordações e pessoas que passaram e permaneciam na sua vida. As saudades preenchiam muitas vezes as noites de Viktor. Amava pessoas, perdia-se em momentos de júbilo. Mas a solidão era companheira constante: na maioria das vezes desejada, na minoria indesejada.
Sentia saudades das pessoas, daquelas que as marcavam inteiramente. Por vezes não conseguia distinguir os sentimentos que tinha pelas pessoas. Amava uns, odiava outros.
Mas havia aqueles em que o seu sentimento era maior. Viktor perdia-se no seu jardim em pensamentos. Era-lhe tão difícil expressar os sentimentos de seu coração.
A Lua brilhava intensamente e os olhos de Viktor reluziam com as lágrimas. Sentia fortes emoções, mas de que valia. A ausência apoderava-se de si. Sentia a saudade.
Havia algo em si que não sabia explicar. Seria amor, seria paixão? Não lhe conseguia associar nenhum nome, pois os sentimentos há muito que desapareceram do seu vocabulário. Camuflava-os com muita coisa, e difícil era sempre conseguir compreende-lo. Engasgava-se nas palavras, suavam-se-lhe as mãos, o coração palpitava sempre demais. Então escondia o que sentia, tentava ser um ser sem coração, sem alma. Gelado como o gelo, frio como o inverno mais rigoroso. Quem o conhecesse à primeira impressão diria que era um negro ser, como a noite mais escura, no vale mais profundo, onde nem os mais fortes raios da lua conseguiam chegar e os raios de sol pouco tempo por ali se perdiam. Mas não! Viktor conseguia ser a pessoa mais doce, mais carinhosa, máis atenciosa. Só era preciso conquistarem-lhe o coração. Mas até isso era difícil neste momento. Sofrera muito com alguns que lhe haviam transformado o coração de pedra em coração de cristal. Viktor não se permitia novamente a sofrer isso e limitava todo o acesso ao coração.
As estrelas reluzentes no céu voltavam a relembrar os sentimentos que lhe preenchiam o coração. Era uma mística de grande saudade na ausência, de eterna alegria na presença; era o entregar-se totalmente sem esperar retorno, amar continuamente. Os seus olhos brilhavam mais na sua companhia e escureciam-se mas na ausência. Todos os dias pensava nesses do seu coração, a todo o momento desejava vê-los de novo.
A noite ia avançada quando Viktor pousou por fim o copo, levantou-se e passeou pelo jardim. Na penumbra da noite parecia-lhe ver aqueles que ele queria ver. Mas eram somente sombras. Mas isso não o fazia tremer. Sabia que por maior que fosse a distância nada mudaria o que ele sentia, pouco mudaria a relação que existia entre ambos.
Entrara em casa, fechara as cortinas atrás de si. Deitara-se na cama, fechara os olhos e sonhara. Entrava no seu coração, reconhecia os seus cantos e o que lá residia. Seria feliz, certamente, porque o seu coração estava em júbilo.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Amanhã!

É fim de tarde. Estou sentado numa esplanada perdida entre a Estrela, o Caramulo e a Gralheira. Os meus pensamentos levam-me para longe, para locais perdidos na minha mente.
As lágrimas correm o meu rosto. Sou assim, apegado às memórias do passado. Já o não posso evitar.
Não sei se são lágrimas de tristeza, dor ou saudade. Não sei porque correm.
Olho as andorinhas que voam no céu. Invejo-as. Queria ser livre de voar, percorrer o mundo sem apegos.
Estou cansado de tanto lutar, de tanto fazer. Mas nada disso importa. O esquecimento cai sobre nós bem mais depressa do que aquilo que pensamos ou desejamos. Tudo é passageiro e só resta viver cada momento com intensidade.
Agora sou uma simples caminhante neste mundo tão incerto. Um caminhante que deambula pelos caminhos, em direcção ao horizonte. Sou um caminhante na sombra à espera de ser lembrado. Mas tão certo é eu sair da sombra em momentos de necessidade como o sol voltar a nascer amanhã.
Alguns dizem-me que é o destino. Mas eu deixei de acreditar nessa predisposição das coisas que irão acontecer quer queiramos quer não. Pergunto-me até se não será defeito. Talvez. Advogado em causa própria nunca é bom.
Levanto-me e sigo o meu caminho. O céu ainda arde com a despedida do sol. As pessoas atarefadas correm a meu lado. E eu ao lado delas corro atarefado. Somos todos iguais neste mundo de diversidade. Talvez sim, talvez não.
A incerteza é o meu pior inimigo.
Aprendi a viver. Comecei a conhecer o mundo onde vivo, as pessoas que me rodeiam. As palavras que hoje dizemos são tão efémeras que uma simples rajada de vento leva-as para longe. Só os actos importam. A capacidade de se comprometerem tornou-se tão leve que voa juntamente com as palavras. Mas ainda existem excepções. Mas tudo é tão difícil.

Reclino a cabeça na almofada. Fecho os olhos e relembro que amanhã será um novo dia. Amanhã uma nova esperança, novas coisas para aprender. Amanhã. Haverá sempre a esperança de um amanhã!



Ad majorem Dei gloriam!
Ismael Sousa

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Caderno preto, folhas amarelas.

Hoje voltei a reabrir o meu diário. Esquecido ou deixado de parte quase hà ano e meio, retirei-lhe o pó e voltei a ver aquelas folhas amarelas onde falei de glórias e derrotas, de alegrias e tristezas, com sorrisos e lágrimas.
Não sei se o comecei da melhor ou da pior maneira, o certo é que comecei. Não interessa, é passado. É o meu passado e não o posso apagar.
Agora que o leio, rio-me de algumas coisas que escrevi. Hoje é uma pessoa diferente que lê. Diferente daquela que o começou a escrever, naquele caderno de capa preta, folhas amarelas.
Ano e meio depois volto a preencher as suas folhas amarelas com tinta preta ou azul. Ano e meio depois, a história é diferente. Tanta coisa para contar a esse meu confidente de nenhumas palavras, de nenhumas opiniões.
Hoje novas lágrimas voltam a manchar o papel, desbotar a tinta, deformar as palavras.
É um momento meu, um momento só meu e de mais ninguém!
A vida mudou. As pessoas mudaram. As circunstâncias são outras.
Negar que sinto saudade de alguns momentos, seria enganar-me a mim próprio.
Tudo é indefinido. Muitas coisas são vagas.
Nas minhas últimas palavras, naquele caderno preto de folhas amarelas, pedi a Deus força. De tudo o que escrevi esse foi das poucas coisas que se realizaram. Tantos sonhos, tantos projectos, tantas ilusões. Tudo por água abaixo. A vida é uma incerteza. Aprendemos a viver cada dia de cada vez. O futuro a Deus pertence e só nos cabe viver cada momento intensamente. Nada nos impede de sonhar, mas nada nós garante que esses mesmos sonhos se concretizem.
Amei, chorei, sofri, regozijei-me intensamente.
Se o passado em algo ainda me faz chorar, isso ninguém o saberá. Apenas eu e as folhas amarelas do caderno preto!