O dia ainda mal nascera quando
saí pelo velho portão grande. De ferro, enferrujado pelo tempo, o portão sempre
se mostrou imponente. Sempre fora um limite, na minha infância, que eu não
podia transpor.
Quando os primeiros raios de sol
começaram a surgir no céu limpo já eu me encontrava longe de qualquer sinal de
civilização, longe das pessoas, longe de tudo aquilo que me perturbava. Dirigia-me
para as serras, local que sempre roubou o meu coração e sempre esteve na minha
memória. As serras que sempre me visitaram nos meus sonhos, as minhas serras. Tão
grande é a minha paixão por estes montes.
Quando o sol chegou a zénite, já
eu me encontrava no cimo dos meus montes, das minhas serras.
Debaixo de um velho pinheiro,
entre a erva verde e a carqueja, deitei-me. Fechei os olhos e tentei dormir,
mas a falta de algo incomodava-me, a ausência daquilo que tantas vezes me encheu
o coração, os ouvidos e os sentimentos, não me deixava dormir.
Ah, sim, como sentia saudades da
música, a minha companheira de horas infindas, de alegrias e tristezas. Como tanta
vez me refugiei nestes montes à procura de inspiração, de ouvir os espectáculos
que a natureza dava. Mas não mais era capaz de sentir isso. A música
afastara-se da minha vida, ou eu repelira-a, como tão costume tenho. E, neste
dia, partira para a serra para me encontrar de novo com ela. Procurava-a na
erva fresca, nas ribeiras e cascatas, nos pássaros e nas árvores. Mas tudo me
parecia calado, num silêncio profundo! E a minha busca continuava.
Sentei-me no cimo de um rochedo,
contemplando as paisagens verdejantes, as pequenas casas das povoações mais
próximas, o céu azul. Mas tudo me parecia triste e sem vida. Toda a minha
solidão me fazia sentir estes sentimentos tão enganosos. Só o meu defeito me
fazia ver estas coisas desta forma, corrompendo os meus olhos, para que toda a
felicidade, alegria e cor, desaparecessem.
A eterna lágrima de um coração
fraco caiu. Sempre a fraqueza de um coração que nada vale! Não foi o mundo que
se afastou de mim, mas sim eu quem o afastou. Fechei-me no meu eterno casulo,
entre as paredes da minha casa impedindo que entrassem aqueles que deviam
entrar. Mas a vida tem duas vertentes: boa mãe ou uma madrasta horrível, e para
mim ela foi madrasta. Podem dizer muitas coisas, mas só eu, eu que vivi a minha
vida, posso dizer o que a vida foi para mim. E depois de tanto sofrer fechei-me
num casulo impenetrável para não mais sofrer. Mas esse casulo começou a apertar
e a dor foi ainda maior.
O sol punha-se no horizonte,
pintando o céu de tons vermelhos, parecendo que todo ele ardia com o sol,
sempre belo na despedida, sempre belo na chegada.
Rumei a casa. Quando transpus o
velho portão não o fechei como sempre: esta noite ficará aberto.
Entrei em casa. A escuridão tem
predominado nesta casa ao longo de muitos anos. Abri as janelas de par em par,
afastei as cortinas, abri as portas das varandas. A luz da lua entraria esta
noite nesta casa. A brisa da noite faria levantar o pó, as velhas folhas e
levaria consigo a frieza e toda a tristeza desta casa!
Quando me sentei ao piano, para
recordar todos os anos que ali me tinha sentado, a tocar e a inventar, a lua
iluminava as teclas de marfim. Brancas e pretas, todas elas se ordenavam e
brilhavam à luz da lua. Os dedos começaram a pressionar as teclas e a música
voltou a mim! A lua, musa de tantas músicas, ajudara-me a compreender um mundo
diferente, um mundo de onde eu tinha fugido.
Subi as escadas para o meu
quarto. A velha cama de dorsel exibia-se com toda a sua magnificência.
Sentei-me à secretária de pau-santo que trouxera de uma das minhas muitas
viagens, abri o velho caderno preto e comecei a escrever.
Agora fecho-o e com ele um rol de
palavras tristes e negras. A minha vida mudou juntamente com o fim e o selar
deste livro!
Ad majorem Dei gloriam!
Ismael Sousa
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