A camisa negra repousa, por cima
do fato preto, em cima da cama. São nove horas da noite e chega a altura de me vestir.
Abotoo os botões da camisa deixando os últimos dois por abotoar. Calço os
negros sapatos, de biqueira, e visto o casaco.
Saio de casa e o meu caminhar
dirige-se até aos tascos de Alfama. Passo as vielas e recordo na minha mente as
letras.
Chego acompanhado pela ansiedade e
pelo nervosismo.
Os guitarristas já estão em palco
e começam a dedilhar um fado. Dirijo-me para junto deles, colocando-me atrás
deles com as mãos em seus ombros.
Estamos em Alfama e nada me
levaria a não começar com as “Vielas de Alfama”. Preparo a voz e solto as
palavras:
“Horas mortas, noite escura, uma
guitarra a trinar, um homem a cantar o seu fado de amargura. E através da
vidraça enegrecida e rachada, aquela voz magoada entristece quem lá passa.
Vielas de Alfama, ruas da Lisboa antiga, não há fado que não diga, coisas do
vosso passado. Vielas de Alfama, beijadas pelo luar, quem me dera lá morar para
viver junto do fado…”
O silêncio reside na sala até que
eu acabe o canto. Inclino-me perante o público ao som das suas palmas.
As cordas ainda geme, mas agora
num fado diferente. A Lisboa, sempre presente, têm em seu seio o fado. E não
falar dela era impossível… Vem então “Maria Lisboa” até junto a mim.
As horas passam, mas o fado
sempre presente.
Chega a hora de me despedir, mas
não o podia fazer sem antes deixar sair da minha alma dois fados.
Faço sinal aos guitarristas e
convido os presentes a cantarem comigo. E eis que na sala começa a surgir o
canto acompanhado pelas palmas e ritmos nas mesas:
“Oiça lá, ó senhor Vinho, vai
responder-me mas com franqueza, porquê que tira toda a firmeza, a quem encontra
no seu caminho? Lá por beber um copinho a mais, até pessoas pacatas, amigo
Vinho, em desalinho, vossa mercê faz andar de gatas. É mau o procedimento e a intenção
daquilo que faz, entra-se em desequilíbrio, não há equilíbrio que seja capaz.
As leis da física falham e a vertical de qualquer lugar, oscila sem se deter e
deixa de ser perpendicular.
Eu já fui, responde o Vinho, a
folha solta a bailar ao vento, fui raio de sol no firmamento, que trouxe à uva
doce carinho. Ainda guardo o calor do sol e, assim, eu até dou vida: aumento o
valor seja de quem for, na boa conta, peso e medida. E só faço mal a quem me
julga ninguém, faz pouco de mim. Quem me trata como água é ofensa, pago-a! Eu
cá sou assim. Vossa mercê tem razão, é ingratidão falar mal do Vinho e, a
provar o que digo, vamos, meu amigo, a mais um copinho!”
Sem perder a energia de todos os
presentes, despeço-me, com a música do meu coração:
“Sem a cor das bandeiras
domingueiras, nem o sol que tem as chitas, ó Lisboa, sem favor, como as tuas
carvoeiras são bonitas. Olhai-as passando, gentis toutinegras, por dentro tão
brancas, por fora tão negras. As asas são ancas, num ritmo brando, porque não
pisam, deslizam voando.
Ai venham ver, venham ver as
Carvoeiras, venham ver os olhos delas, que maneiras têm de olhar. Ai venham
ver, dois carvões numa braseira, colocados à janela, para o ventos os atear.”
Volto a casa, adormeço sob a
minha almofada, com o fado no peito…
Post-Scriptum: Este texto, este
sonho, este delírio, é uma forma, minha, de homenagear o Fado que é, agora, Património
da Humanidade.
Ad majorem Dei gloriam!
Ismael Sousa
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