segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Já nada disso existe!


«O meu coração é um mar de chamas que destrói tudo aquilo que construí com lágrimas, sorrisos, com dor e consolação. Destrói-me por dentro, consumindo todas as minhas forças, toda a minha vontade de apagar esse fogo consumidor. Querer amar, alegrar-me, torna-se impossível com este fogo abrasador. Mas certamente a força do amor, a fé no Deus que é Amor, apague estas chamas flamejantes, pois esses, o amor e a fé, não ardem com o fogo. Eles próprios são fogo consolador, fogo de ânimo e de energia…»
Pouso a caneta depois de findar estas palavras que escrevi numa folha branca que residia na minha mesa. Escrevo-o para desabafar. Não interessa o sentido das frases. Escrevi-as porque necessitava de escrever.
Encosto-me às costas da cadeira e olho para a enorme janela recortada do meu escritório. Lá fora a noite está no seu máximo. A Lua começa agora a surgir, apresentando-se, receosa pela sua ausência, apenas com um fiozinho, esperando que o mundo a aceite novamente. As estrelas no firmamento exibem todo o seu brilho. O orvalho começa a cair.
De novo me concentro nas palavras que escrevi anteriormente. Como podem elas ser tão contrárias aos sentimentos que invadem o meu coração, que invadem a minha mente? Confio no Amor e no amor, mas não tenho o meu coração a destruir-me por dentro. São pura mentira, pura contradição a tudo o que sinto. Rasgo a folha escrita, puxo uma em branco, molho o aparo da caneta na tinta preta e começo a escrever novamente.
Apago o candeeiro da secretária e saio do escritório. Sobre a mesa estão várias folhas escritas: escritas com o coração, com os seus sentimentos.
Percorro a casa grande e fria. Olho o salão, recordando as grandes festas, os grandes jantares, os bailes, entre tanta coisa que ali se passou. As tardes ao piano, ou os pequenos concertos ali dados para a família. Mas agora já nada disso existe.
Sobre o piano, o violino jaz. Sobre as mesas, pequenos retractos da vida outrora vivida.
Subo as escadas relembrando as vezes que imponentemente as desci, sob os aplausos e palavras de admiração. Mas agora já nada disso existe. Somente a recordação.
Agora, na minha velhice, sou esquecido. Sem mulher nem filhos, ou qualquer família chegada.
Deito-me no meu leito, abro a gaveta da mesa-de-cabeceira e retiro de lá o velho e gasto terço. Faço rodar as suas contas pelos dedos, pedindo a Deus que me guarde uma vez mais esta noite, agradecendo-Lhe por todas as graças do dia. Beijo a cruz e fecho os olhos.
O sol da manhã ergue-se no céu. Os seus raios trespassam os brancos cortinados de linho. Sobre uma velha cama de dossel, jaz um corpo. Um corpo inanimado, um corpo frio e sem vida.
Bela foi a sua vida, ainda mais bela a sua partida.




Ad majorem Dei gloriam!
Ismael Sousa

1 comentário:

  1. Por vezes contrariar aquilo que se sente poderá ser um erro que mais tarde não se conseguirá corrigir...

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