Deixei o mundo longe de mim...
Fechei a tampa do piano e a porta dos sonhos!
O mundo fechou-se para mim e eu vi-me obrigado a ver-me longe do mundo!
Todos aqueles que me rodeavam de dia e noite deixaram-me estendido na rua, onde a noite era sombria e o vento frio! Rasgaram as minhas vestes, bateram-me até cair! Inconsciente me deixaram e num lugar desconhecido lançaram o meu corpo para que não conseguisse voltar para casa!
Quando os meus olhos se abriram, no meio de algo que eu não conhecia, fui guiado pelas estrelas até à minha velha mansão!
Tudo permanecia como eu havia deixado! Os portões fechados, as janelas cerradas, as luzes apagadas.
Entro de rompante na casa, fechando a porta com força a traz de mim! Dirijo-me à arrecadação, onde procuro por correntes e cadeados!
Saio porta fora, fecho o grande portão com cadeados! Ali não mais entrará ninguém que não seja de minha vontade!
Vasculho o bolso, tentando encontrar a chave da porta! Fecho a porta à chave, com todos os trincos que ela possa ter! Coloco-lhe uma tranca para que não a consigam arrombar!
Acendo um castiçal que ali se encontra!
Subo ao primeiro andar, fechando todas as janelas e cortinados que encontrava pelo caminho! Neste andar, deixo somente abertas as portas das janelas da varanda! Subo ao andar superior e fecho novamente todas as janelas e varandas, todos os cortinados! Nesta casa não mais entrará luz!
Volto ao único local onde deixei as portas abertas!
Na casa reina a escuridão, o silêncio, a solidão!
Na grande sala, o único local da casa com luz, tudo me parece supérfluo! O piano onde passei horas deixou de tocar. Já não mais tenho vontade para lhe abrir a tampa, de tocar nas suas teclas brancas e pretas! Na sua cauda jazem as partituras que eu durante uma vida toquei! Partituras que me proporcionaram momentos de alegria e gozo, que me trouxeram amigos e riqueza...
A batuta também lá permanece. Muitos movimentos, muitas horas, muita música por ela passaram... Graças a ela consegui comprar esta casa, comprar amigos, amores, sentir-me o dono do mundo...
A parede sustem em si inúmeros prémios que agora de nada me valem!
Toda a minha fama, glória e riqueza só me trouxeram infelicidade! Não tenho ninguém a meu lado... Todos os que me amavam eu afastei com a minha soberba, com os meus títulos, com o monstro em que me tornei!
Corro para as portas da varanda e abro-as... Volto para junto da "parede da glória", que tantos assim a chamaram, e retiro dela todos os "títulos" e "glórias" que nela tenho...
Enquanto os tiro da "parede da minha infelicidade", lanço-os pela varanda, para que não mais os veja!
Fecho as portas da varanda, cerro as suas cortinas e sento-me no cadeirão onde passei horas a fumar charutos e a ser venerado por inúmeras pessoas que só se acercaram de mim pela fama, pelo prestígio...
Nunca nenhum deles me conheceu verdadeiramente. Nunca nenhum deles soube ler os meus olhos!
Acendo o cachimbo, a única luz em toda a minha casa...
Fecho os olhos e adormeço...
Longas foram as horas de sono, onde os fantasmas me assolaram e tornaram todos os meus sonhos em pesadelos!
Na fresta de uma das janelas um raio de sol entra pela sala...
Acordo das longas horas de sono e abro as portas da varanda! Saio para a varanda ficando temporariamente cego pelo sol!
A pouco e pouco vou recuperando a visão e à minha volta vejo que o sol voltou a raiar, as andorinhas voltaram a voar, as flores abriram novamente, que tudo voltou para um novo dia!
Olho à minha volta e reparo em como tudo é belo! Choro! Choro não por tristeza, mas de alegria. Choro por ter tomado consciência da vida que tenho levado!
Decido mudar; decido recomeçar... Não irei recolher os "títulos" e "glórias" do chão, mas irei partir à procura dos meus verdadeiros amigos e pedir-lhes perdão...
Ad majorem Dei gloriam!
Ismael Sousa