domingo, 31 de outubro de 2010

Esperança num novo acordar!

Vai-se desenrolando o novelo de lã.
Sigo o fio de lã, com os olhos, procurando, dessa forma, o seu fim.
Na ponta umas agulhas encontro. Cruzam-se as agulhas com os dedos e a lã e um novo ponto sai. Outro e outro.
Seguram as agulhas e a lã uns dedos gastos pelo tempo, pelo trabalho, pelo frio, pelo calor...
A seu colo um gato preto, enroscado no seu próprio pelo, dorme.
Está junto à janela, iluminada pela luz da lua. No compartimento tudo está escuro.
O cadeirão e a "avó" são as únicas com luz.
Tricota uma camisola. No último ponto, corta a linha, estende a camisola à sua frente e, carinhosamente, dobra-a. Espanta o gato de seu colo. Lenta e dolorosamente, levanta-se caminhando em direcção ao novelo da lã.
Espeta-lhe as duas agulhas e coloca o novelo com as agulhas no cesto dos novelos.
Acende uma pequena vela e de súbito toda a sala se ilumina.
Coloca a camisola, numa pequena meia que está pendurada na lareira. Do lado direito, uma árvore toda enfeitada. Na fronte da lareira, cinco pequenas meias aparecem, cada uma com o seu recheio.
Dirigi-se para o cadeirão. Abre um pouco mais a portada da janela, para poder deixar entrar um pouco mais da luz da lua. Apaga a vela e endireita o cadeirão.
Ao sentar-se,o gato preto volta para o seu colo.
Enquanto acaricia o gato, olha a lua e o mundo. A lua faz-lhe lembrar o marido que já partiu. A lágrima maldita corre, caindo sobre o gato que se livra dela facilmente.
Mas para a "avó" não é assim tão fácil livrar-se daquele sentimento de perda, nostalgia, solidão.
Olha o gato que adormeceu novamente no seu colo. Levanta os olhos e, olhando pela janela, procura a torre da igreja. Enquanto a procura, os seus olhos vêem as estrelas que lhe traz à recordação todos os seus doze filhos e filhas, os seus netos e netas, sobrinhos e sobrinhas-netas. Toda a sua família, da qual ela é a mais velha.
Vive sozinha na sua velha casa, com energia para viver e trabalhar durante o dia. Junto à noite, começa a tricotar as prendas de Natal. Todos sabem que da Avó vem sempre uma camisolinha quente, um par de meias de lã, um gorro para os rapazes, umas luvas para as meninas, e para os mais novos, um cachecol ou uma cobertor...
Não há Natal que não seja celebrado na sua casa, com os seus doces caseiros, os seus pratos para a ceia. Obriga todos a participarem na Missa do Galo lá da terra. Os mais resistentes que ficam em casa, sabem que as prendas só se abrirão depois da meia noite e de todos virem da missa.
Foca o seu olhar agora na torre da igreja: foi ali que foi baptizada pelos seus pais, que recebeu a comunhão solene, onde se casou, baptizou filhos e netos, onde se despediu de seus pais, irmãos e irmãs, marido e um filho!
Todos os Domingos veste o seu melhor fato, coloca o véu sobre a cabeça e dirige-se para a missa.
Todos os dias vai à igreja onde ou reza o terço, ou o "Angelus", ou ouve missa.
Nas suas contas diárias do terço, relembra toda a sua família.
Pede perdão a Deus e reza pelas almas dos seus que se encontram no Purgatório.
Aos filhos e netos ensinou tudo o que sabia. Ensinou-os a rezar, a viver, a poupar, a serem homens e mulheres. Todos os dias, junto ao calor da fogueira, reunia-a e juntamente com o seu marido, dava as lições. Ao fim, rezavam sempre o terço, dando no fim a bênção aos seus filhos para irem descansar.
Era assim que eles viviam; era assim que eram felizes.
Sorrindo, com um sorriso contagiante, voltou a acender a vela, subiu as escadas para o seu quarto. Pousou o gato no fundo da cama e deitou-se. Antes de se deitar, ajoelhou-se junto à cama, onde rezou a Deus três Padres-Nossos, e três Avé-Marias.
Beijou a fotografia que tem na mesa de cabeceira. Beijou-a três vezes: uma pelo marido, outra pelos filhos e sobrinhos, outra pelos netos e sobrinhos-netos.
Apagou a vela e adormeceu, na esperança de amanha voltar a acordar!


Ismael Sousa

1 comentário:

  1. Muito bom post Ismael...
    Está muito bem escrito e pensado, e muito tocante :D

    Fica bem e continua a escrever :D

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Obrigado pelo comentário!